Não sei se a história que vou contar cabe aqui, mas estou considerando que qualquer história bonita combina com um quintal.
Há alguns anos atrás, li numa aula de francês um artigo que mencionava um tal de “folclore obsceno das crianças” e fiquei tão intrigada que corri atrás do livro (isso significou importar um livro francês, usado, num sebo on-line americano e em seguida a sua tradução por uma editora de Barcelona na Argentina também via internet). Fiquei com essa pulga atrás da orelha até que ela se transformou num projeto de mestrado.
Por causa desse projeto (e mais um penduricalho de outras questões) fui parar na análise. Comecei a saber mais sobre Claude Gaignebet, autor do Le Folklore Obscène des Enfants. Descubro que ele nasceu na Síria, um típico pied-noir, além de ser um rabelaiseano que defendeu a tese desse livro que tanto me interessa, no ano de 1968 sob a orientação de Roger Bastide e tendo na banca Lacan. Procuro aqui e ali e tenho algumas intuições sobre a pessoa dele, uma enorme simpatia, algumas idealizações e claro, muita curiosidade.
Ano passado, em dezembro, decidi escrever pra ele. Quem está no meio acadêmico aprende logo a não cortar os pulsos quando não obtem uma resposta, mas, pra minha surpresa, a dele chega em menos de 40 hs. Ele é educado, generoso, receptivo e me promete uma resposta em breve, tão logo possa recolher as indicações que lhe peço.
Sei que Claude Gaignebet é conhecidamente erudito, além de um defensor de áreas de conhecimento em franca (e injusta, na minha opinião) decadência. Discordo da teoria dele em vários pontos e isso de forma alguma diminui minha enorme empatia. Acredito que essa identificação se deva ao fato de que o meu estudo tem me permitido cada vez mais me conciliar com a criança que eu fui. E vamos combinar que isso não é pouca coisa.
Até que em fevereiro agora, tomo um susto ao abrir meu e-mail. O senhor de 74 anos com quem eu começava a me corresponder havia falecido. Ele não estava doente, ao contrário, tinha muitos projetos.
Eu estava cansada naquele dia e devo dizer que as lágrimas escorreram ininterruptamente. E assim continuaram nos dias seguintes. Passados três dias, escrevo pra mulher que intermediava a minha correspondência com ele. Uma aluna? Sua mulher? Secretária? Amiga? Pouco me importa agora. Escrevo dizendo que sinto muito. As palavras são muito deficitárias nesses momentos, menos ainda se não estão no idioma da gente. Acho mesmo que ficou aqui um resto que talvez eu não tenha conseguido falar. Envio o e-mail quase como uma mensagem ao mar. A resposta vem ainda mais rápida que a primeira. Ela me conta da humanidade dele, da partida dele, dos projetos dele. Estou envolvido com os dois até o último fio dos cabelos. Durmo mal. Choro à toa. Perco a fome. Não tiro um sorriso do rosto de gratidão pelo presente que ela me dá com suas descrições. Alguns dias depois ela parte para longe, se despede e nossa correspondência termina.
Aos poucos vou me dando conta de que se ele não era um guru, um mestre, (e tampouco sua obra uma bíblia), ele era ao menos (se é que isso é pouco) uma espécie de pai teórico e que há motivos de sobra pra me sentir muito sozinha. Não há pesquisa sem autonomia intelectual, mas isso não impede que a gente marque as referências que nos são importantes.
De lá pra cá, ando calada, introspectiva, mas cada dia melhor. Estou investindo em comfort food, comfort people, comfort drink, comfort jeans e outros comfort´s.
Pensando bem, até que demorou pra eu vir aqui.
Devo dizer que a minha pesquisa segue como uma espécie de homenagem.
Claude Gaignebet (1938, +2012)
_Cibele_