“Narciso acha feio o que não é espelho”
(Caetano Veloso)
Trabalhei uns tempos num projeto no Vale do Jequitinhonha, zona paupérrima no norte do estado de Minas Gerais. Meu trabalho era com as educadoras crecheiras de várias cidadezinhas em torno de Araçuaí.
No nosso primeiro encontro, dei uma aula de História da Arte que costumava dar nas escolas privadas de Belo Horizonte. Não mudei uma palavra, uma imagem sequer, pra desespero dos organizadores do projeto, que argumentavam que eu devia adaptar a aula para pessoas “ignorantes, sem cultura, coitadas”.
Realmente, as educadoras crecheiras do Vale do Jequitinhonha não eram pessoas eruditas. Falavam e escreviam “mal” o português (usavam modalidades linguísticas próprias da região e cometiam erros gramaticais e ortográficos); desconheciam informações básicas da cultura universal; tinham pouquíssima formação acadêmica (a maior parte nem tinha completado o ciclo escolar elementar). Mas nunca na minha vida obtive tão bons resultados num trabalho de formação como com elas.
Ávidas pelo conhecimento, simples, diretas, perguntadeiras, com uma facilidade de alinhavar e de estabelecer relações originais espantosa. Organizadas, respeitosas, sabidas (como diz a Ci) porque conhecedoras a fundo da cultura e do ambiente local, e principalmente das relações entre esses dois âmbitos. Exemplo: nossa oficina seria de produção de tintas a partir de pigmentos naturais (terra e plantas). Pedi a elas que recolhessem diferentes cores no ambiente. E recebi em troca uma verdadeira lição de solo e de flora. Pura Cultura.
Outra fez um projeto em que relacionava o ambiente dos quadros de Brueghel com o Vale. Nunca tinha visto na vida mulheres mais cultas.
Agora, aqui em Milão, conheci a Nazaré. Nascida e criada no sertão baiano. Até os 13 anos era analfabeta. Até os 17 vivia numa tapera sem eletricidade, no meio do nada. Aos 19 juntou as malas e foi morar em Vitória. Queria estudar. Conhecer. Entender o mundo. Lá conheceu um italiano, namoraram 2 anos e ela desembarcou em Milão com ele em janeiro do ano passado. Em julho casaram no Brasil, num típico “casamento na roça” em que a noiva chega à igreja numa carroça.
A gente se conheceu no Instituto de Cultura Brasileira, porque foi o primeiro lugar que ela, recém-chegada, foi procurar. E logo se ofereceu pra ser voluntária na biblioteca. Devorava um livro depois do outro, em italiano e em português.
Toda sexta, a Nazaré me perguntava: Qual mostra você vai ver no fim de semana? E cinema? Tem alguma outra atividade cultural que valha a pena? E fazia tudo, até mais que eu, no pouco tempo livre que tinha. Ávida pelo conhecimento, a Itália virou pra ela mais um Universo a desbravar.
Nazaré, como as educadoras crecheiras do Vale do Jequitinhonha, não é uma pessoa erudita. Mas com a sua Cultura agora está trabalhando numa Biblioteca de Milão, em projetos de inter-culturalidade, representando o Brasil. Ontem me ligou me contando de seu último projeto: um espetáculo teatral (ela se inscreveu no Teatro Universitário daqui) sobre o encontro de Emília com Pinóquio. E comentou: esses dois personagens representam bem a Ética das duas nações, você não acha?
Mais culta impossível.
_Claudia_
4 comentários:
Ô, se...eu quero conhecer a Nazaré!!!
Clau, entro de férias hoje...não sei se vai dar para postar nesse fim de janeiro. Tento mandar notícias do meio do mato, mas não sei se será possível.
Beijos em vc, nos leitores e na Nazaré.
Que bacana a história da Nazaré.
Beijos,
Fefê
Eu falo sempre pra ela que devia escrever as suas memórias... a história dela é incrível. Outro dia ela me contou que, quando era pequena, era doida pra ter uma máquina fotográfica. Aí, nos dias de chuva forte no sertão, ela subia na árvore e a cada relâmpago fazia uma pose. Disse que achava (e talvez ainda ache) que quando morrer vai encontrar todas aquelas fotografias no Céu.
o contrario tb é muito comum, né. conheço muita gente que se auto celebra e auto declara mas nao tem nenhuma cultura.
bj
viviane
Postar um comentário