quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Poesia sobre a infância

Ana Paula, leitora sabida, apontou tempos atrás que o Quintarola estava em falta com a poesia. Justo com a poesia, a forma mais infantil de ver o mundo. Falta gravíssima, vou tentar amenizar, postando vez por outra uma poesia sobre ou para a infância.

Hoje, de volta a Belo Horizonte e em homenagem à cidade que deixei pra trás, trago duas poesias de Adélia Prado, a divinopolitana mais ilustre.

Me despeço aqui, que poesia tem dessas coisas. Pede silêncio de sobremesa.

_Cibele_

A MENINA DO OLFATO DELICADO
Quero comer não, mãe
(no canto do fogão o caldeirão esmaltado)
quero comer não, mãe
(arroz com feijão, macarrão grosso)
comer não, mãe
(sem massa de tomate)
quero comer não, mãe
(com gosto de serragem)
quero comer não, mãe
(com cheiro de carbureto)
quero comer não
(vi um gato no caminho, fervendo de bicho)
quero comer não, mãe
(quando inaugurar a luz elétrica e o pai consumir com o gasômetro, eu como).
Vamos ficar no escuro, mãe. Põe lamparina,
põe gasômetro não, o azul dele tem cheiro,
o cheiro entra na pele, na comida, no pensamento,
toma a forma das coisas. Quando a senhora tem
raiva sem xingar é igual a ruindade do gasômetro,
a azuleza dele. Vomito, mãe. Vou comer agora não.
Vou esperar a luz elétrica.
CARTONAGEM
A prima hábil, com tesoura e papel, pariu a mágica:
emendadas, brincando de roda, 'as neguinhas da Guiné'.
Minha alma, do sortilégio do brinquedo, garimpou:
eu podia viver sem nenhum susto.
A vida se confirmava em seu mistério.
REBRINCO
As minhas primas vinham ensaboar as de missa.
Enchiam a bacia de espuma, Tialzi cuspia dentro,
ai que nojo. Mesmo assim, tão bonito!
As calcinhas de Tialzi amarelavam no fundo,
dois, três dias na grama, marronzavam.
Eu andava em círculos, escutava conversa,
interrogava com apertada atenção.
Quando de tão calada me notavam, eram as pragas.
Tão boas, tão como devem ser que eu desinterssava,
ia chamar Letícia pra brincar.
Medo que eu tinha era não ter mistério.

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