Imagem: Guernica, de Pablo Picasso
(Este post surgiu de uma conversa com um “conspirador do brincar”, Luiz Carlos Garrocho)
O menino da favela brinca de vender cocaína e de metralhadora. O menino italiano brinca de caçar o "cigano-ladrão". O menino americano brinca de explodir países inteiros. Em casa, na escola, as “lutinhas”. O soldadinho. O super-herói.
Tudo é narrativa. A Vida parece estruturada como narrativa.
O Jogo – o brincar – não podia ser diferente.
“De brincadeira” se faz o belo, mas também o bullying, o vandalismo, os jogos políticos, o jogo de negócios, os jogos de guerra. Jogos perversos. Paradoxo inquietante. Às vezes assustador. A violência penetra o mundo da brincadeira, transborda.
As crianças imitam (brincando) o mundo onde estão imersas. E trazem também dentro de si, na natureza humana, os componentes do “lado obscuro da Força”. É uma luta interna de duas narrativas tão opostas quanto humanas. O bom e o cruel lado a lado.
Nessa luta, vista de frente, a possibilidade de aprender ou de se render. É preciso descobrir “Mas e eu, a que jogo pertenço?”
Brincar consigo mesmo – a auto-ironia. Saber brincar. Saber narrar a si mesmo. A dimensão lúdica precisa ser cultivada, inventada, encontrada de um modo muito pessoal. Até que o que esteja no centro seja a alegria, o entusiasmo, a leveza e não mais a onipotência. Aí entra o adulto-ao-lado-da-criança. Aquele que brinca junto, que compartilha as emoções e sugere caminhos. E propõe questões. Se a sociedade estimula a violência, podemos no nosso micro-cosmos indicar outras saídas. Mas isso é um processo longo, não coercitivo.
O que queremos ser através do brincar? Quem queremos ser?
O jogo, narrativo, contém segredos. Poder falar, escutar, interagir, procurar as palavras do outro. Ver a si mesmo primeiro pra ver o outro – e sua extensão, o mundo - depois. Ou a partir de si. Ensaiar a tolerância e a auto-compreensão.
Devemos nos ocupar de narrar a nós mesmos através do brincar, pois a brincadeira põe ordem ao caos da existência.
_Claudia Souza_
5 comentários:
A conversa entre quintais continua...
Brincávamos, na década de 60, de matar alemães e índios, de prender bandidos. Mas na hora de escolher papéis, a maioria queria ser bandido ou índio.
Eram brincadeiras simbólicas. Mas exisiam as reais. E outro dia vi um vídeo impressionante, na Irlanda, garotos de 11 anos por aí vitimando outro, numa mistura de simbólico e real (tinha armas de brincadeiras mas executavam ações reais).
Cláudia, penso que muitas brincadeiras são, como você disse, imitam a sociedade adulta. Acho, até, que constituem o material de linguagem... As perversões da sociedade, dos adultos...
Agora, você insiste numa coisa interessante, em que participo: é necessário brincar! Acho que o problema começa quando se produz vitmização, quando a obscuridade entorpece os sentidos e a gente anda dentro de um buraco, torturando e sendo torturado. Há jogos de crueldade pura. Mas é preciso, vejo isso na sua fala, trazer a alegria. E no simbólico isso acontece: escolher papéis, forças, lados... Vivenciar, pelo transverso, a força real, o medo, o instinto de agressão, como você diz. Mas acontece, Cláudia, que muitos educadores ainda não estão preparados para encarar a violência simbólica sem medo, sem moralismo. Acham um absurdo que as crianças brinquem com isso nas aulas de teatro. Aí está um problema.
Abraços
Pois é, Garrocho, os adultos geralmente não ajudam muito as crianças em se tratando de violência porque não sabem lidar com a própria violência. Então, diante das crianças, ou a reforçam e oferecem modelos e estímulos claríssimos, ou a negam, colocando a criança num lugar de inocência que eles mesmos inventam. Culpa e moralismo, de um lado, perversão e onipotência do outro. Esses parâmetros extremos são visíveis também em questões como os contos de fadas, a TV, o cinema infantil, a palmada, a violência doméstica, o video-game e tudo que envolve violência e criança. Vira quase sempre fundamentalismo (que é o que acontece diante do não-saber). E ajuda pouco, né?
Enfim, a coisa passa pela narrativa de si, Garrocho. Não é?
Clau,
Nesse livro do Brougère (brinquedo e cultura, que citei no post posterior a esse) tem um capítulo sobre jogos de guerra bem legal. Várias idéias dele me chamaram a atenção...como por exemplo o fato de que nem toda brincadeira de guerra é violenta, assim como uma brincadeira qualquer pode ser; da semelhamça estrutural entre a brincadeira e a guerra e a possibilidade de experimentar simbolicamente a violência. Da oportunidade que a brincadeira de guerra dá de sair do cotidiano. Sobre como as crianças sabem distinguir a brincadeira mais agressiva da violencia propriamente dita, embora algumas vezes isso seja difícil para o espectador da brincadeira. De como o adulto se projeta nessas rejeições às brincadeiras de guerra (eu acrescentaria também nas brincadeiras mais sexualizadas), como vc falou.
E pra terminar uma frase dele que me parece crucial: as crianças nos remetem uma imagem ridícula de nós mesmos... Quem tem filho sabe disso...nada mais doloroso que ver neles as nossas limitações.
o tema é ótimo! arrosou!
Uma vez, uma mãe chegou pra buscar um menino na escola e ele estava se engalfinhando com o outro no pátio, pareciam brigar mesmo. A mãe se desesperou e olhou em torno pedindo socorro. A professora estava ali ao lado, e não fazia nada pra impedir aquela briga, como assim? Outros educadores circulavam, mas ninguém tomava nenhuma atitude. Esses meninos vão se machucar! pensou a mãe. Aí então ela não aguentou, abriu o portãozinho que limitava o mundo das crianças e o dos pais e foi correndo "separar" aquela briga, aquela coisa violenta que ninguém impedia. Os meninos pararam um pouco, olharam para ela com complacência e o filho disse, educadamente: Mãe, dá licença. Treinamento de herói.
Oi, Suzana. Já vi esse filme rsrsrs obrigada pelo comentário tão pertinente.
Bem vinda! Abração.
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Cibele, vou ver se consigo ler esse livro, parece mesmo muito interessante, obrigada pela dica.
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