A coisa bonita que acontece quando uma historinha vira livro é o pacto que se estabelece entre palavra e imagem: essas duas construções do espírito humano, tão diferentes e independentes, fazem dobradinha diante dos olhos leitores. Ler passa a ser uma coisa muito mais saborosa que decifrar ou descrever. Ler passa a significar, como nunca, interpretar, atribuir sentido. Porque o sentido passa a vir simultaneamente de duas fontes diversas, não de uma só.
Obviamente um texto resiste sem a imagem (taí a tradição oral que não me deixa mentir) e vice-versa (os livros de imagem). Mas as duas juntas se transformam numa outra rede de significantes. É tudo outra coisa. No texto, as palavras brincam de esconde-esconde nas entrelinhas, nas tonalidades, nas combinações sonoras; nas imagens, os desenhos se entrelaçam nas cores, nas perspectivas e nas proporções. Uma com a outra o jogo se complexifica num vai e vem metafórico, ambos convidando à recriação, fazendo-se humildemente às metades porque aguardam a participação ativa e fundamental do leitor. Cada livro é outro-livro diante de cada leitor.
Eu sou pública e descaradamente apaixonada pelas palavras e vocês vão me ver sempre defendendo o texto escrito ou falado. As palavras são o meu que-fazer. Embora aprecie muito as artes visivas (e até não seja péssima desenhista) não me atrevo a ilustrar porque compreendo e respeito a preciosidade dessa ação. Mas ver minhas historinhas ilustradas por quem entende da coisa e sabe fazer direito me provoca uma sensação absurda de completude. Fico pensando que as minhas idéias encontraram idéias-parceiras que as enriqueceram, que as transformaram e que as tornaram ainda mais instigantes. Não são mais as mesmas idéias do início. A ilustração sabe passar e receber a bola do texto, embora seja ela mesma uma outra história dentro do livro.
Não entro nem por decreto na discussão (da baixa-academia) de qual das duas – palavra ou imagem – seria mais importante no livro infantil. Quem precede quem, quem parte de quem, quem desdobra quem. Discussãozinha fajuta que ofende quem valoriza a palavra chamando-o de “racionalista” ou quem valoriza a imagem chamando-o de “pragmático”. Palavra pra mim não é só razão e imagem não é só descrição. Valorizo as duas, quero qualidade das duas e principalmente valorizo o “namoro” das duas. Que pode acontecer ou não (já disse, a palavra resiste sozinha e a imagem também) mas, quando acontece, é uma coisa maravilhosa.
_Claudia_
4 comentários:
O Luiz Camargo, que é um ilustrador bacana e estudioso da relação entre imagem e palavra, chama esse namoro de coerência intersemiótica. Eu gosto dessa idéia! Embora ache que vez por outra a imagem possa se rebelar...Não me ocorre nenhum exemplo agora, mas não me parece impossível...te parece, Clau?
http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/poesiainfantilport.htm
Eu vejo sempre textos lindos com ilustrações não tão lindas ou ilustrações estupendas com textos insignificantes. Nem sempre o "namoro" dá certo não. Vejo também ilustrações que se rebelam sim, que fogem completamente do traço do texto e, embora proponham outros caminhos e isso não seja um mal em si, criam muita confusão pra quem lê. Precisa ter coerência, isso é dado. E sintonia entre imagem e texto.
Outro dia, vivi uma situação nova pra mim que foi muito especial. A Christelle que ilustrou meu livro da Princesa me passou umas imagens e um argumento e me pediu pra escrever o texto. Foi muito interessante, porque acabou saindo uma coisa bem bacana, que mesmo ela tendo dado as coordenadas a surpreendeu. Me senti no papel do ilustrador diante de um texto: é claro que eu tinha um material de referência, um pretexto, mas as minhas possibilidades de criação eram infinitas.
Muito bom o texto do Luiz Camargo! Explica direitinho mesmo o tal "namoro" que eu falava, dizendo que a ilustração ACOMPANHA o texto.
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