quarta-feira, 10 de junho de 2009

Cliente ou cidadão?

Li, entre perplexa e preocupada, esta entrevista com André Lapierre, educador francês, considerado o “pai” da Psicomotricidade Relacional. Coincidentemente, essa semana eu tinha acabado de reler o Programa Ministerial das Escolas Maternas francesas. O texto linkado é longo, mas vale a pena ler com a devida atenção e tirar suas próprias conclusões. Abaixo, teço algumas considerações muito pessoais, das quais vocês estão convidados inclusive a discordar.

Conheço a Psicomotricidade Relacional. Há quase 20 anos, quando ainda estudava psicologia na UFMG, vivenciei a técnica, estudei seus conceitos e cheguei a aplicá-la em meus estágios supervisionados. Ótimo recurso clínico, bons conceitos, bons fundamentos. Ótimas intenções. É mais que óbvio que, através de alguns materiais, brincando livremente com eles, as pessoas expressem seus sentimentos, suas motivações, até seus fantasmas. É igualmente óbvio que, no âmbito da comunicação humana, os objetos possam exercer uma função mediadora, principalmente quando se trata de uma comunicação complicada (como quase toda comunicação, eu diria). Ou seja, nada muito diferente de uma psicanálise, cujo fio condutor é a linguagem; na Psicomotricidade Relacional, este fio passa a ser as ações corporais. Se o recurso interpretativo do Psicanalista são as palavras organizadas em interpretação, o do Psicomotricista relacional são suas impressões organizadas em ações pontuais.

Vejam bem, não tenho nada contra a técnica (não creio seja um método, pois nada que envolve relações humanas pode ser enquadrado em método) em si. Mas me preocupo com seu uso nas escolas brasileiras como vem sendo feito nos últimos anos.

Na minha opinião, entre outras coisas:

1) Quando, onde e como submeter-se a uma técnica psicoterapêutica precisa derivar de uma escolha pessoal e subjetiva. No caso da criança pequena, que esta escolha seja pelo menos da família, não da escola. Ok, a família “sabe” que a escola adota esta técnica, mas a família é leiga, não tem conhecimento suficiente para definir conteúdos e práticas curriculares, a família age por confiança;

2) O profissional que coordena qualquer uma destas técnicas deve ser habilitado. Um educador não é um psicólogo, não pode exercer a função de interpretar. Mesmo se existam psicólogos presentes às “sessões”, a presença de outros adultos não habilitados influencia a condução do processo;

3) As crianças pequenas têm direito à privacidade de seus sentimentos e motivações como qualquer pessoa humana. É um uso indevido do poder institucional colocá-las em “sessão psicoterapêutica” sem o seu consentimento;

4) Os espaços simbólicos sociais devem ser bem delimitados. Escola não é clínica. São duas instituições com configurações e objetivos muito diversos. É claro que, por onde circulam pessoas humanas, existem problemas existenciais, mas o modo de lidar com estes problemas é muito diferente num âmbito e n’outro;

5) Uma classe escolar não pode ser definida como um grupo psicoterapêutico, já que nela confluem outras dinâmicas, principalmente políticas, que não são de ordem psicoterapêutica. Ou seja, o professor não pode ocupar posições diferentes em relação a seus alunos, sob o risco de perder-se o eixo das relações;

6) A elaboração das relações pessoais dentro da Escola não pode ser limitada a um enquadramento clínico. Ao contrário, permeia toda a vivência escolar.

Enfim, acredito que não por acaso o Ministério da Educação francês retirou esse tipo de prática de seu programa. E não é porque os franceses sejam resistentes, como hipotiza Lapierre na entrevista. A premissa mais importante do “Programa das Escolas Maternas e Elementares” de 2002, é justamente educar na cidadania, educar cidadãos.

“L’inégalité sociale, nous le savons, est d’abord une
inégalité culturelle : c’est à l’école qu’il appartient de
réduire cette distance par rapport au savoir et à la
culture” – (“
A desigualdade social, sabemos, é sobretudo uma desigualdade cultural: e cabe à Escola reduzir estas distâncias através do saber e da cultura”) diz o texto do Programa francês.

Educar cidadãos é muito diferente de atender clientes. Eis o maior problema da Educação brasileira atual. E o uso de técnicas psicoterapêuticas, pela e na Escola, é esta tendência levada ao pé da letra. Cheias de boas intenções, as Escolas brasileiras erram ao definir e conceitualizar seu público-alvo.

_Claudia Souza_

5 comentários:

Anônimo disse...

o problema é que as escolas estao sempre querendo colocar o brincar a serviço de alguma coisa. ou da pedagogia ou nesse caso da psicoterapia. deixem a molecada brincar em paz!
Bj.
F.

Lélia disse...

Pois é, também pensei isso mesmo, F. O maior problema da instituição Escola é que quer "escolarizar" tudo.
Abçs.
Lélia

Cibele disse...

O que me deixa meio de cabelo em pé é essa ideia de intervenção precoce...

O argumento 3 da Clau também me incomoda. No reino do psicologismo, ficou na moda vasculhar o íntimo e despejá-lo no meio da rua. Além disso, fico me perguntando se a escola tem esse direito. De acessar as verdades dos outros pela porta dos fundos. Aliás, essas informações dão um poder, né? E poder exige muita, muita responsabilidade...

Luiz Carlos Garrocho disse...

Cláudia,

Concordo com você quanto à questão da intervenção terapêutica nas escolas. Aliás, o que é menos interessante é esse aspecto de "pacote" pedagógico... Mas o Lapierre trouxe contribuições importantes. Ele mostrou a falta de fundamentos da psicomotricidade antiga (aliás, ancorada em necessidades pedagógicas que cairam com tempo, como os exercícios de psicomotricidade fina que eram baseados na relação mão-olho consideradas importantes para a aprendizagem da escrita), trouxe a valorização do corpo, da liberação do contato, da não-culpabilização etc.

O problema, para mim, reside nesse aspecto terapêutico e de pacote psicopedagógico. Aí, a coisa se complica e você chama bem a atençao sobre esse aspecto. Mas acredito que as pessoas não podem jogar "a criança fora com a água suja do banho".

Você sabe que as escolas infantis brasileiras, na sua maior parte, não valorizam o corpo e nem o lúdico. Culpabilizam o contato, chamado de "agitação" e "agressividade", não dispôem de nenhum espaço livre para a manifestação corporal etc.

As pesquisas de Lapierre sobre a mediação do objeto são muito interessantes também para a arte-educação, principalmente para o teatro e a dança, acredito. Volto a dizer: o problema fica por conta da intervenção terapêutica. E nisso reside, a meu ver, a escorregada de Lapierre: em vez de procurar pela cultura - pela expressão dos afetos que ocorre nela (na arte, no lúdico etc.) ele fica preso ao papel antigo, o do psicomotrista no espaço escolar. Agregando esse papel na escola, ele se perde. Que funcione então como técnica terapêutica, sim, mas no espaço clínico. E se, ao contrário, ele investisse no elemento pedagógico (na formação do cidadão, como você diz), ele contribuiria de modo mais universal e livre para a melhoria da educação. Mas, então, precisaria investir na cultura e não no papel de "psicólogo". Este profissional sim, poderia ser aproveitado - e acredito que deva ser - na escolas. Mas há uma mistura, ao que me parece e que você mostra bem, entre o papel de educador e de intérprete clínico etc. Uma furada, não é?

Abraços

Claudia Souza disse...

Ei, Garrocho, pois é, como você disse bem, o Lapierre trouxe contribuições importantes sim! Eu inclusive trabalhei um tempo na linha que ele proõe e é muito interessante clinicamente. Concordo muito com você quando diz que ele escorrega ao pegar o fio da terapia e não o da Cultura. E as escolas que usam a técnica "enquadrada" escorregam mais ainda nisso daí, não é? Mas afinal, no brincar espontâneo da criança com os materiais (estruturados e principalmente não-estruturados como ele propõe ) eu penso que acontece essa passagem pra cultura... E talvez aí dê pra separar bem os papéis. O importante é mesmo pegar o que cada corpo teórico e prático tem de bom e usar de um modo reflexivo e responsável.
Abração!

 
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