“Encontro o pediatra que se ocupa de algumas creches. Gostaria de saber em que modo o recente projeto de lei sobre a segurança* influenciou a vida cotidiana das crianças. A conversa pega uma direção inesperada. Ele conta de uma jovem indiana, com dois filhos muito inteligentes e um marido extremamente imbecil. Ela veio pra Italia com um contrato de trabalho que depois venceu. Agora é obrigada a trabalhar “in nero” (isto é, sem carteira assinada).
Quando era ainda regularizada tinha mandado buscar o marido e os filhos. O marido não se ambientou e pra desabafar suas frustrações bate na esposa e talvez maltrate os filhos. Vivem em uma garagem adaptada que custa mais de quinhentos euros ao mês, embora não tenha nem o “habite-se”.
O médico pára e me pergunta: “Em uma situação assim, pra você, quem paga as consequências?” Depois recomeça a falar, explicando-me que não é uma gripe ou uma otite mal-curadas a adoecer as crianças das famílias estrangeiras: é o clima pesado que respiram dentro e fora de casa. Parece que a depressão entre os filhos de imigrantes esteja aumentando, juntamente a outros distúrbios psicológicos. As crianças, principalmente as muito pequenas, precisam mais de amor que de cuidados. Enquanto a situação das mulheres, ou seja, das mães, não melhore, serão as crianças a pagar as consequências mais pesadas. O risco é que o mal-estar que trazem dentro de si transforme-se em um modelo comportamental parecido com aquele a que são submetidas, criando uma espiral sem fim.
Pensava de falar sobre as escolhas erradas de um governo, pensava que um médico me fornecesse dados científicos sobre o perigo de algumas leis repressivas. Mas me vi, de novo, ouvindo a história de uma mulher maltratada e de crianças oprimidas.
O médico parece acolher o meu estado de ânimo e termina a sua história. A um certo ponto, a mulher indiana teve a coragem de ir pra um abrigo público. Depois decidiu voltar com o marido, com a condição de dormirem em camas separadas. Talvez fosse a primeira vez que aquela mulher tivesse posto uma condição a um homem. Talvez as crianças quebrem a espiral e a transformem em alguma coisa de novo, como só elas sabem fazer.
Ingy M. Kakese, nascida no Cairo de mãe egípcia e pai congolês, vivem em Roma desde 1976. (ingymub@libero.it)”
*Um pacote lançado pelo Governo Berlusconi com diversas medidas repressivas contra os imigrantes no país, inclusive considerando a clandestinidade crime.
Quis compartilhar esse artigo que li na revista Internazionale desta semana com vocês. Qualquer semelhança com as condições de grande parte das crianças brasileiras (e até européias, por outros motivos que não a pobreza) não é mera coincidência. No fundo, a coisa acontece mesmo como disse a jornalista egípcia autora do texto: nos vemos sempre “ouvindo histórias de mulheres maltratadas e de crianças oprimidas”. Até quando?
_Claudia Souza_
2 comentários:
Oi Cláudia, texto bacana. Penso que o cenário se pareça um pouco com o do Brasil mesmo. Aqui, tínhamos (temos) o êxodo rural. Quem não vive em sua terra natal por falta de opção tem menos condições de dar aos filhos uma estrutura familiar. Afinal, entre o pão e a singeleza não cabe discussão.Não conheço bem, embora desconfie, as causas que levaram o governo italiano a adotar estas medidas. É um assunto complexo porque economicamente o governo vislumbra uma situação ideal que afeta milhares de pessoas no curto prazo em troca de um "benefício" futuro pouco explicado.
É, Maurício, imigrar é sempre uma coisa complicada. Mas o que os países ricos precisavam compreender é que são eles os grandes responsáveis pela falta de opção que provoca os fluxos humanos. Pra mim, o grau de civilidade de um povo se mede pela sua capacidade de acolher. Difícil é, e muito, principalmente nessa crise, receber um monte de gente sem condições. Mas é também gente disposta, trabalhadora, o que pode ser transformado em recursos humanos pro país, desde que haja políticas públicas adequadas. O que definitivamente o Governo Berlusconi não quer fazer, prefere botar a culpa de tudo nos imigrantes, da violência, da crise. Ele usa essa causa como fator eleitoral e pra ele tá bom.
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