Li, entre perplexa e preocupada, esta entrevista com André Lapierre, educador francês, considerado o “pai” da Psicomotricidade Relacional. Coincidentemente, essa semana eu tinha acabado de reler o Programa Ministerial das Escolas Maternas francesas. O texto linkado é longo, mas vale a pena ler com a devida atenção e tirar suas próprias conclusões. Abaixo, teço algumas considerações muito pessoais, das quais vocês estão convidados inclusive a discordar.
Conheço a Psicomotricidade Relacional. Há quase 20 anos, quando ainda estudava psicologia na UFMG, vivenciei a técnica, estudei seus conceitos e cheguei a aplicá-la em meus estágios supervisionados. Ótimo recurso clínico, bons conceitos, bons fundamentos. Ótimas intenções. É mais que óbvio que, através de alguns materiais, brincando livremente com eles, as pessoas expressem seus sentimentos, suas motivações, até seus fantasmas. É igualmente óbvio que, no âmbito da comunicação humana, os objetos possam exercer uma função mediadora, principalmente quando se trata de uma comunicação complicada (como quase toda comunicação, eu diria). Ou seja, nada muito diferente de uma psicanálise, cujo fio condutor é a linguagem; na Psicomotricidade Relacional, este fio passa a ser as ações corporais. Se o recurso interpretativo do Psicanalista são as palavras organizadas em interpretação, o do Psicomotricista relacional são suas impressões organizadas em ações pontuais.
Vejam bem, não tenho nada contra a técnica (não creio seja um método, pois nada que envolve relações humanas pode ser enquadrado em método) em si. Mas me preocupo com seu uso nas escolas brasileiras como vem sendo feito nos últimos anos.
Na minha opinião, entre outras coisas:
1) Quando, onde e como submeter-se a uma técnica psicoterapêutica precisa derivar de uma escolha pessoal e subjetiva. No caso da criança pequena, que esta escolha seja pelo menos da família, não da escola. Ok, a família “sabe” que a escola adota esta técnica, mas a família é leiga, não tem conhecimento suficiente para definir conteúdos e práticas curriculares, a família age por confiança;
2) O profissional que coordena qualquer uma destas técnicas deve ser habilitado. Um educador não é um psicólogo, não pode exercer a função de interpretar. Mesmo se existam psicólogos presentes às “sessões”, a presença de outros adultos não habilitados influencia a condução do processo;
3) As crianças pequenas têm direito à privacidade de seus sentimentos e motivações como qualquer pessoa humana. É um uso indevido do poder institucional colocá-las em “sessão psicoterapêutica” sem o seu consentimento;
4) Os espaços simbólicos sociais devem ser bem delimitados. Escola não é clínica. São duas instituições com configurações e objetivos muito diversos. É claro que, por onde circulam pessoas humanas, existem problemas existenciais, mas o modo de lidar com estes problemas é muito diferente num âmbito e n’outro;
5) Uma classe escolar não pode ser definida como um grupo psicoterapêutico, já que nela confluem outras dinâmicas, principalmente políticas, que não são de ordem psicoterapêutica. Ou seja, o professor não pode ocupar posições diferentes em relação a seus alunos, sob o risco de perder-se o eixo das relações;
6) A elaboração das relações pessoais dentro da Escola não pode ser limitada a um enquadramento clínico. Ao contrário, permeia toda a vivência escolar.
Enfim, acredito que não por acaso o Ministério da Educação francês retirou esse tipo de prática de seu programa. E não é porque os franceses sejam resistentes, como hipotiza Lapierre na entrevista. A premissa mais importante do “Programa das Escolas Maternas e Elementares” de 2002, é justamente educar na cidadania, educar cidadãos.
“L’inégalité sociale, nous le savons, est d’abord une
inégalité culturelle : c’est à l’école qu’il appartient de
réduire cette distance par rapport au savoir et à la
culture” – (“A desigualdade social, sabemos, é sobretudo uma desigualdade cultural: e cabe à Escola reduzir estas distâncias através do saber e da cultura”) diz o texto do Programa francês.
Educar cidadãos é muito diferente de atender clientes. Eis o maior problema da Educação brasileira atual. E o uso de técnicas psicoterapêuticas, pela e na Escola, é esta tendência levada ao pé da letra. Cheias de boas intenções, as Escolas brasileiras erram ao definir e conceitualizar seu público-alvo.
_Claudia Souza_